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Esta é uma continuação. Caso ainda não tenha lido a primeira parte, comece POR AQUI.
Folhetim – Presente Cinza, passado em cores – Capítulo 3
Mayara foi para o Sapucaitava munida da pequena câmera digital. Ainda que fosse de qualidade inferior à câmera de seu celular, o quase-brinquedo conseguia até tirar umas fotos razoáveis. Talvez ela ajudasse com a mágica de fazer a tal mulher do vestido de chita surgir, se é que aquilo tudo era mesmo verdade. Uma parte da jovem, a mesma parte que se recusava a apagar a foto da mulher de chita, queria acreditar.
O vento salgado batia em seu rosto e, a cada passo, ela sentia como se cruzasse uma fronteira invisível entre presente e passado. A história contada pela funcionária do museu não saía de sua cabeça. Era óbvio que aquilo parecia exagero — coisa de cidade pequena, onde lendas crescem como o mato: rápidas e insistentes.
O morro estava vazio naquele começo de tarde. Turistas geralmente apareciam no final do dia, atrás do pôr do sol perfeito. Agora, apenas o som de folhas secas sob seus pés e o canto distante de uma cigarra a acompanhavam. Chegando a um pequeno mirante de madeira, Mayara respirou fundo e ergueu a camerazinha.

Foto de Marisa Santesso
Clicou uma, duas, três vezes, registrando o mar lá embaixo, o verde da restinga e o céu azul pintado sobre o horizonte, além do próprio caminho da trilha pelo qual viera. A cada foto tirada, o coração batia mais forte. E se ela realmente aparecesse? E se, de alguma forma, essa câmera — esse objeto misterioso que veio parar em suas mãos — fosse uma espécie de portal para alguma memória perdida de Itanhaém?
Com os dedos ligeiramente trêmulos, Mayara revisou as imagens na tela. As duas primeiras estavam normais: paisagem bonita, céu com poucas nuvens, nada demais. Mas, na terceira foto, o estômago dela deu um nó.
Lá estava ela.
Pequena, quase no canto da imagem, como se mal quisesse ser notada em uma breve clareira entre as folhas verdes da trilha — a mulher de vestido de chita e cesto na cabeça. Só que havia algo diferente dessa vez. Na imagem de Calixto, ela apenas olhava para a câmera, imóvel, como um retrato vivo. Aqui, no entanto, a mulher parecia estar dando um passo à frente, como se tentasse sair da fotografia e caminhar em direção a Mayara.
A câmera escorregou por um segundo, e Mayara sentiu um calafrio subir pela nuca. Isso não era possível. Não fazia sentido. Mas ela estava ali. Presente. Como uma memória rebelde que se recusa a ficar no passado.
O vento soprou mais forte, e Mayara teve a estranha sensação de ouvir um murmúrio em meio à brisa. Uma voz feminina, distante e arrastada, dizendo algo que ela não conseguiu entender — mas que parecia vir da própria câmera.
Mayara deu um passo para trás, respirando rápido, mas sem coragem de largar o aparelho. Ela sabia que, a essa altura, não era mais só uma coincidência estranha. Era um chamado.
E Mayara estava disposta a segui-lo.
De repente, uma rajada de vento trouxe consigo uma camada de areia fina, fazendo Mayara fechar os olhos por um instante. Quando abriu novamente, a tela da câmera ainda exibia a figura da mulher de chita, como uma cicatriz impressa entre pixels e memória. Por reflexo, Mayara olhou para o mesmo ponto da trilha onde a mulher deveria estar, segundo a foto. Vazio. Apenas o mato seco balançando, inocente e indiferente.
Mas o eco da voz que ouvira – ou achara ter ouvido – ainda latejava em seus ouvidos. Não era uma palavra completa, parecia mais um som quebrado, algo como “vol…ta”. Voltar? Volta do quê? Volta pra onde? Ou… volta quem?
Segurando firme a câmera, ela desceu a trilha com pressa, sem se importar com os galhos arranhando sua perna. Já próxima à base do morro, quase tropeçando em suas próprias perguntas, relampejou em sua mente um detalhe do qual ninguém falara diretamente. O Porto das Almas*. Desde criança, ouvia aquela expressão em histórias de pescador, sempre associada a tragédias do mar, mas nunca com uma explicação concreta. A ideia era simples: algumas almas, dizia-se, nunca deixavam Itanhaém – ficavam presas, rondando lugares específicos, aparecendo para quem soubesse olhar.
De volta à praça, ela abriu o celular e fez uma busca rápida: “Porto das Almas Itanhaém história real”. Entre blogs turísticos e matérias sensacionalistas, encontrou uma menção discreta em um artigo acadêmico sobre memória fotográfica. Um professor da USP citava o termo ao discutir registros de paisagens feitas por Benedito Calixto. Segundo ele, Calixto acreditava que certas paisagens guardavam a presença de quem passara por ali – como se a luz, ao tocar esses corpos, gravasse não apenas sua imagem, mas sua própria essência.
O conceito era bonito, quase poético. Mas agora, na prática, ele arrepiava. E se aquela mulher fosse uma dessas presenças capturadas? E se Calixto, ao fotografá-la, tivesse aberto uma espécie de brecha entre tempos? Uma fotografia fantasma, repetida e renascida a cada vez que uma nova lente apontasse para aquele mesmo pedaço de terra.
Com esse pensamento, Mayara decidiu voltar ao museu. Desta vez, não para perguntar sobre Calixto – mas para tentar encontrar qualquer coisa sobre o tal Porto das Almas. A funcionária da recepção a reconheceu e arqueou as sobrancelhas, mas Mayara foi direto ao ponto.
— Vocês têm algum arquivo antigo sobre um Porto das Almas? Algo que não esteja exposto?
A mulher pareceu surpresa com a pergunta, mas depois de hesitar alguns segundos, assentiu.
— Tem sim. Não é muita coisa, mas a gente guarda uns papéis no arquivo morto. É aquele tipo de lenda que as professoras gostam de usar pra contar história pra criança em excursão. Por quê?
— Eu só quero entender. Sabe, sobre a relação disso com o Calixto. E com as fotos que ele tirava.
A funcionária fez um gesto para que Mayara a seguisse até uma salinha no fundo do museu. Lá dentro, caixas empilhadas de forma caótica ocupavam cada canto. A mulher puxou uma pasta encardida, amarelada pelo tempo, e a entregou à Mayara.
A pasta era fina, mas seu conteúdo era estranho. Além de cópias de matérias de jornais antigos falando sobre pescadores desaparecidos e relatos de luzes estranhas sobre o mar, havia uma única fotografia. Uma imagem desbotada de uma mulher de costas, na beira da praia, olhando para o horizonte.
A mesma silhueta. O mesmo vestido. O mesmo cesto.
Mas, desta vez, uma anotação a lápis no canto da foto fez o coração de Mayara disparar:
“Porto das Almas – aquilo que se deixa de ver.”
O que seria aquilo? Deixar-se de ver?
Antes que pudesse formular qualquer teoria, a funcionária a chamou de volta ao presente:
— Se você quiser, tem uma coisa a mais que posso mostrar. Não é oficial do museu, mas tem um ou outro que vem aqui perguntar sobre esse Porto das Almas. Às vezes, deixam bilhetes. Mensagens estranhas. Sei lá, gente que gosta de brincar com o sobrenatural. Quer ver?
Mayara hesitou por um instante, mas sua curiosidade já tinha se transformado em fome pelo saber.
— Quero.
A mulher puxou uma caixinha de madeira debaixo do balcão. Dentro dela, papéis dobrados, pedaços de fotografias rasgadas, anotações de datas e coordenadas. E no topo de tudo, um papel recente, com uma letra nervosa e trêmula:
“Ela apareceu pra mim também. Não olhe diretamente nos olhos. Eles guardam o que você perdeu.”
Mayara sentiu o chão sumir.
O que ela perdeu?
Respirou fundo. Se havia uma resposta, ela sabia onde procurar: no próprio Porto das Almas. Talvez fosse a hora de ir até lá.
(continua na semana que vem… PARA LER A CONTINUAÇÂO -PARTE 4- CLIQUE AQUI)
Organizador do CENI – Clube de Escrita Nós de Itanhaém, autor e editor