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Folhetim – Presente Cinza, Passado em Cores – Capítulo 2
Mayara não conseguia tirar os olhos da foto no celular. A mulher de vestido de chita estava ali, em meio ao cenário de praia e matagal, exatamente como aparecia na imagem dentro da câmera. Era impossível não notar o ar antigo da fotografia, como se tivesse sido tirada há mais de um século. Mas o que mais a incomodava não era a estranheza do registro em si, e sim o fato de estar ali, dentro de um cartão de memória que ela jamais usara.
Tentando controlar a inquietação crescente, voltou seus pensamentos à primeira pista que encontrara. O livro que folheara minutos antes mencionava Benedito Calixto e sua paixão pela fotografia. Além disso, havia aquela anotação misteriosa: Linha 21, Pl. 5 – 7. Mesmo sem saber exatamente como aquilo se encaixava na história, sentia que tudo estava interligado.
Retornou ao livro, folheando as páginas novamente até encontrar o trecho em que havia contado as palavras. A quinta e a sétima da linha marcada eram “fotográficos” e “passado”. A princípio, as palavras pareciam aleatórias, mas o contexto a fazia pensar de outra forma. Afinal, Calixto foi um dos pioneiros na fotografia no Brasil, especialmente em registros do litoral paulista. Ele poderia muito bem ter sido a primeira pessoa a capturar a imagem daquela mulher.
Movida por essa suspeita, Mayara pegou o celular e começou a pesquisar sobre o pintor e fotógrafo. Entre várias imagens de suas obras, encontrou um artigo sobre sua vida e passagens por Itanhaém. Uma seção em especial prendeu sua atenção: um pequeno texto mencionava as pessoas que Calixto retratara ao longo de sua vida, destacando uma figura peculiar – uma vendedora de frutas de identidade desconhecida.
Mayara prendeu a respiração ao abrir a fotografia anexada ao artigo. Seu sangue gelou.
Era a mesma mulher, mas numa outra foto.
Ela usava o mesmo vestido de chita, carregava o cesto na cabeça, e estava na mesma pose registrada na câmera. O que mais perturbava e ao mesmo tempo fascinava Mayara, no entanto, era o olhar da mulher. Enquanto todas as outras figuras da fotografia pareciam alheias ao fotógrafo, a vendedora olhava diretamente para a lente, como se quisesse comunicar alguma coisa através do brilho dos olhos.
A legenda abaixo da imagem encontrada explicava que o retrato fora feito por Calixto em 1900, e não havia mesmo qualquer registro do nome ou destino daquela mulher. O que era de se esperar, já que nenhuma outra pessoa da foto havia sido reconhecida também.
Como aquela mesma imagem havia aparecido na câmera que Mayara recebera? E, pior ainda, se esse era um retrato do passado, por que surgia de tempos em tempos em novas fotografias?
Se havia algo a descobrir, talvez o lugar certo para isso fosse o museu da cidade.

Na manhã seguinte, decidiu visitar o Museu Conceição de Itanhaém, onde poderia haver algum registro de Calixto. O prédio colonial, com suas paredes caiadas e janelas de madeira envelhecida, parecia guardar os segredos do passado, ou pelo menos a aromática fragrância de itens arcaicos. Ao entrar, Mayara dirigiu-se à mesa de informações, onde uma funcionária de meia-idade a atendeu com um sorriso gentil.
— Oi, com licença — disse Mayara, tímida — você sabe me dizer alguma coisa sobre essa foto velha aqui?
A mulher franziu a testa com o “carinho” das palavras de Mayara e olhou fixamente para a tela. Seu semblante gentil foi logo mudando para uma expressão de surpresa e cautela.
— Onde você conseguiu isso? — perguntou, num tom que parecia esconder um desconforto.
— Veio dentro de uma câmera esquisita que me deram. Você sabe se é alguma foto tirada pelo Benedito Calixto?
A funcionária achou estranhíssimo, mas não estava lá para julgar os possíveis visitantes deslumbrados do Museu. Por isso hesitou, antes de finalmente responder:
— Se foi tirada por Calixto? Bom… sim… e não.
— Como assim? — indagou Mayara.
A atendente lançou um olhar furtivo ao redor, como se temesse que alguém pudesse ouvi-las, e então abaixou a voz.
— Ela parece muito uma segunda versão de uma das fotos do Calixto, uma fotografia que nunca foi encontrada na coleção dos negativos originais dele — ela suspirou — Acredita que, quando ele morreu, jogaram fora as caixas de bacalhau cheias de fotos que ele tinha? A primeira versão, nós só temos porque ela foi reproduzida em uma matéria de jornal antigo…
— Entendi. Mas como pode ter aparecido no meu cartão de memória? Eu tenho certeza de que não passei foto nenhuma pra ele.
A mulher respirou fundo e, por fim, soltou algo que fez um arrepio percorrer a espinha de Mayara.
— Olha, menina… Eu vou te falar uma coisa, mas não fique pensando que eu sou louca, hein — ela ajeitou o cabelo, nitidamente desconfortável, e disparou — dizem que essa mulher continua aparecendo em outras fotografias. Mesmo depois de mais de um século.
Mayara sentiu um frio repentino no estômago.
— Como assim… aparecendo?
— É… As pessoas tiram fotos de lugares históricos daqui da cidade e, quando vão conferir as imagens… ela está lá. No fundo. Sempre do mesmo jeito, com o vestido de chita e o cesto na cabeça.
A mente de Mayara girava em possibilidades. Só podia ser história ou sacanagem da atendente.
— Você só pode estar de brincadeira, né?
A mulher chacoalhou a cabeça, e carregava na face a expressão de quem viu mil fantasmas.
— Menina, eu queria que fosse brincadeira, mas é verdade. Não faz nem um mês que veio um rapaz aqui da sua idade, com uma foto parecida. Ele tirou uma foto em bem no meio da trilha do Sapucaitava, e dito e feito: lá veio a mulher misteriosa, olhando pra câmera.
A atendente fez um sinal da cruz em si mesma. Mayara não podia acreditar naquilo. Parecia ridículo demais para ser verdade.
Mas… e se fosse verdade? A foto misteriosa ainda não tinha respostas decisivas, e o bichinho da curiosidade estava mordendo os neurônios de Mayara mais e mais. Então, ela decidiu pôr a teoria à prova: iria até o morro do Sapucaitava e tentaria tirar umas fotografias com a minicâmera.
Se a tal mulher aparecesse… Aí, tudo ficaria mais macabro ainda.
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